27 março 2024

por quem os sinos dobram

 

(imagem: Maxim Shemetov - aqui)


23 março 2024

"limpar Portugal" - quadro de honra

 

De tudo um pouco: corrupção, dívidas ao Estado, falsas presenças como deputado, violência doméstica, violência na rua, calúnias... São os deputados do partido que diz que vem limpar o país. Citando Miguel Szymanski, a propósito do resultado das eleições: "Há pessoas que, de tanto se sentirem enganadas, de tanto se indignarem com as óbvias falhas do sistema e a sistemática impunidade dos seus agentes, querem agora ser burladas à grande, à séria, aos berros, à antiga portuguesa."













Em termos de deputados eleitos pelo bom povo português, é isto.
 
Em termos de militantes, figuras próximas de André Ventura e representantes do Chega a outros níveis, são "limpezas" de luxo: sequestro, extorsão, tentativas de homicídio - e até um que "limpava" muito bem as caixas das esmolas, tanto por fora como por dentro.












estes que enriquecem o nosso mundo

 


Bom dia. Bom sábado. Bom fim-de-semana. You know how I feel. Esta semana, o parlamento federal alemão foi enriquecido com uma deputada surda, Heike Heubach. Agora andam a repensar o funcionamento da casa: sinais sonoros, tradução para língua gestual, coisas assim.
Uma sociedade com espaço para todos é assim. No outro extremo estavam os nazis, que viam as pessoas com deficiência como um peso para a sociedade, que só estorvavam os outros. (Ai, esperem, acho que me confundi um bocadinho no tempo verbal. Ainda no ano passado Björn Höcke, um dos líderes mais influentes da AfD, falou nesses termos, a propósito da necessidade de "libertar" as escolas do peso que os alunos portadores de deficiência representam para elas.) Já partilhei este vídeo há alguns anos. Mas hoje ouvi-o sem som, e entrei um bocadinho na pele desses que a sociedade tem o desplante e a insensibilidade de ignorar (na menos má das hipóteses) ou considerar abertamente um estorvo (como fazem certos partidos muito em voga na actualidade). Experimentem tirar o som, e ouvir com os olhos - e com o coração aberto à novidade e à diferença.


22 março 2024

longa vida ao nosso jovem!

 

O Herman José fez 70 anos, dizem, e fico sem saber o que pensar: porque faz parte da nossa vida desde sempre, o que significa que já deve ter uns anitos, e ao mesmo tempo continua cheio de energia a criar e a fazer rir e sorrir, como um rapaz de 20 anos. Afinal, em que ficamos?
Ficamos assim: não há muitos como o Herman, capazes de nos pôr a rir não de nós e do que somos, mas a rir connosco e com as figuras que fazemos.
Difícil encontrar gargalhadas mais ternas que essas que nos provoca aquele pasteleiro "eu é mais bolos", que vai para a entrevista errada e tenta desenrascar a situação. Ou o Estebes e as suas bochechas coradas. Ou a criada da Filipa Vacondeus. E tantos outros: que nos reconciliam com as nossas idiossincrasias.
Portanto, seja lá quantos anos forem que esteja a fazer por estes dias: longa vida ao nosso jovem!

Por exemplo, neste vídeo, o Herman José a dar 10 a 0 ao Marcelo Rebelo de Sousa em termos de inteligência, de consciência democrática, de modernidade. E de humor, mas ça va sans dire.
Que pena só agora me ter lembrado disto: Herman para presidente! Já!
(o Herman não dissolvia dois parlamentos em pouco mais de um ano, não se armava em ayatollah e não impunha uma sharia católica a um país livre e laico; de brinde, ainda cantava o hino com a voz bem colocada e muito afinado, e ainda nos fazia rir uns com os outros por sermos como somos - haverá missão mais difícil e mais proveitosa para um presidente dos portugueses desempenhar? O Herman desempenhava-a com uma perna às costas.)

17 março 2024

Alemanha e Israel

Birkenau, 2014. Oil on canvas, 8 ft. 6 3/8 in. x 78 3/4 in. (260 x 200 cm).
Private Collection. © Gerhard Richter

 

Aqui a dorminhoca só reparou hoje que a Almanaque Mag já saiu em Fevereiro. Isso foi, segundo as minhas contas, duas séries de correrias antes daquelas em que ando agora metida. Em plena Berlinale. Não importa: aí está o artigo que escrevi em Novembro de 2023 sobre a Alemanha e Israel. Nasceu de uma necessidade forte que senti na altura de explicar um pouco mais sobre os motivos do comportamento da Alemanha perante os crimes terríveis que Isael estava (e continua) a cometer em Gaza. Algumas passagens já não são muito actuais. Entretanto Israel já triplicou o número de civis que matou em Gaza; os próprios políticos alemães e a população começaram a criticar mais abertamente o governo de Israel; na altura, Geert Wilders era o vencedor das eleições nos Países Baixos, e havia notícias sobre o medo sentido por muçulmanos naquele país - neste momento, já vimos que mesmo que a direita populista ganhe eleições, é possível proteger a democracia. Mesmo assim, o artigo não envelheceu tão mal como temia.


Leiam, e digam o que vos parece.

https://almanaquemag.com/alemanha-e-israel/

15 março 2024

"limpar Portugal"...


Lembram-se do João Miguel Tavares no discurso do 10 de Junho a choramingar, implorando aos políticos “dêem-nos algo em que acreditar”?

“Algo em que acreditar” é mais coisa da religião, mas, pelos vistos, João Miguel Tavares encontrou finalmente para si “o caminho, a verdade e a vida” na política. Não descansa enquanto não meter o São Mentiroso-Compulsivo no governo.

Tempos houve em que João Miguel Tavares se amofinava muito contra Sócrates, chamava-lhe mentiroso-compulsivo, acusava-o de não ter carácter. Parecia o discurso de uma pessoa com sentido de decência. Afinal, não. Agora que se tornou o profeta da nova seita do ódio e do quanto-pior-melhor, é fácil imaginá-lo a desculpar-se, parafraseando o outro: “Talvez este seja um mentiroso-compulsivo, mas é o nosso mentiroso-compulsivo.”

O milhão de portugueses que deram o seu voto ao partido cujo lema – fascista até ao tutano – é “limpar Portugal” permitiram ao menos este pequeno ganho colateral: por estes dias, é muito fácil ver onde está a imundície.

E também onde se encontra verticalidade de carácter: que Luís Montenegro não esmoreça nunca, apesar de todas as pressões, em manter o seu “não é não”.


11 março 2024

involução


Começámos por pensar no 25 de Abril como revolução.
Depois, houve quem afirmasse que era apenas evolução.
Agora, 50 anos depois: involução.

Sobre a distribuição de votos entre os partidos democráticos: como é óbvio, cada eleitor tem o direito de dizer se prefere ter mais ou menos Estado social, mais ou menos impostos para os pobres ou para os ricos, mais ou menos SNS e Segurança Social, mais ou menos privatizações, mais ou menos preocupações de cidadania na escola. A Democracia é mesmo isso.

Quanto aos que meteram 48 arruaceiros incompetentes e cínicos no Parlamento: que carácter e que valores tem essa gente que usa o seu direito de voto para destruir a Democracia e o país?


ontem

 

Ontem houve um momento comovedor na assembleia de voto do Consulado de Berlim: uma jovem portuguesa descobriu que não podia exercer ali o seu direito de voto, e começou a chorar desconsoladamente.

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Para os emigrantes portugueses, o sistema eleitoral é muito complicado. Numas eleições o voto é apenas presencial, noutras é por sistema postal excepto se as pessoas se inscreverem (atempadamente!) para voto presencial. Depois há pessoas que mudam de casa, se esquecem de informar o Consulado sobre isso, e a carta com o boletim de voto é enviada para a morada anterior. E há as que dão a nova morada para efeitos de renovação do passaporte, mas esta informação não passa automaticamente para o sistema de recenseamento eleitoral.

A informação está toda no site da CNE, mas as pessoas provavelmente confiam que "vai ficar tudo bem", e no final têm decepções enormes. 

E como se isto não fosse já muito complexo, ainda temos os correios alemães, que agora são uma sociedade anónima, e desde 2015 maioritariamente na mão de privados. O Estado português bem se esforça a enviar todas aquelas cartas com registo e aviso de recepção, mas estas, mal entram em território alemão, parece que lhes dá uma maluqueira qualquer. E como as pessoas não se dão conta de que a sua carta se extraviou ou voltou para trás, não contactam atempadamente a CNE para pedir novo envio. 

(Também houve uma pessoa que recebeu a carta em casa, mas pensou "ah, prefiro ir votar ao Consulado" - perdeu a viagem e perdeu o voto, porque a carta tinha de ter carimbo do dia anterior. E houve outra que, ao ser informada de que não podia votar porque não se tinha inscrito para o fazer, desatou a insultar a mesa e a ameaçar: "Vocês não sabem com quem se meteram!")  


09 março 2024

votar

Hoje estive no Consulado de Portugal em Berlim das oito da manhã às sete de tarde. Eu, e mais cinco pessoas:

Amanhã, lá estaremos outra vez das oito da manhã até à hora em que aparecer o último de todos os que se inscreveram para o voto presencial.

É só um exemplo do outro lado da medalha: para que os portugueses possam exercer o seu direito de voto, o Estado português gasta muitos milhões de euros em organização, papel, franquias para o voto postal, etc.
E há milhares de pessoas a oferecer generosamente o seu tempo livre para assegurar o funcionamento das mesas de voto.

Ia apelar ao voto - ao voto em partidos que não atirem o nosso país para uma deriva de ódio e autoritarismo - e de repente uma recordação feliz veio ao meu encontro: as primeiras eleições em Portugal depois do 25 de Abril.

A alegria, o entusiasmo das pessoas. A consciência da importância e da dignidade daquele acto.


06 março 2024

Berlinale 2024 - dia 2






O segundo dia do festival foi uma festa para mim: só filmes bons. Além disso, começou bonito. Um belo dia de inverno. Ao fim da tarde, a Filarmonia iluminada guiou-me o caminho enquanto atravessava o escuríssimo Tiergarten a pé, entre o terceiro e o quarto filme do dia.



4. Keyke mahboobe man - My Favourite Cake, de Maryam Moghaddam & Behtash Sanaeeha

Um filme lindo, comovente e divertido sobre uma viúva iraniana de 70 anos que decide dar-se uma nova oportunidade e ser feliz numa relação. Os seus autores, que também já trouxeram à Berlinale o "Ballad of a white cow" não estavam presentes porque o regime iraniano os impediu de sair do país.


5. Crossing, de Levan Akin

(não encontrei nenhum trailer com legendas em inglês)


O filme começa com esta informação: tanto na língua georgiana como na turca, não há género gramatical. Mesmo nos pronomes, o género é neutro. Eu a pensar: "Esta tem graça. Um país é cristão, o outro muçulmano. Aparentemente, não precisam da gramática para se entenderem quanto ao masculino e ao feminino."

Uma mulher vai da Geórgia a Istambul em busca da sobrinha transsexual. E nós vamos com ela, e fazemos com ela o percurso que leva do preconceito ao acolhimento da realidade do outro.

Um filme imprescindível.



6. Sieger Sein - Winners, de Soleen Yusef



Numa escola de Wedding, um bairro berlinense onde vivem muitas famílias de trabalhadores com baixo nível salarial e/ou imigrantes, um professor muito interessado tenta ajudar à integração de uma aluna nova, de uma família curda que fugiu à guerra da Síria, convidando-a a entrar para o clube de futebol feminino.

A realizadora, Soleen Yusef, ela própria chegada à Alemanha em criança, fugindo à guerra do Iraque, decidiu homenagear com este filme a sua família, as crianças refugiadas e os professores que a ajudaram a integrar-se na sociedade alemã e a encontrar o seu caminho.

Por trás da linguagem moderna das imagens, da personagem principal que atravessa a quarta parede para se dirigir ao público, do ritmo excelente, do humor e até do sinal da luta de classes (Wedding contra Charlottenburg, hehehe), o filme oferece um retrato empático daqueles adolescentes, com todos os seus pesos e as dificuldades pessoais que trazem para o seio da comunidade escolar.

Um filme para toda a família que vale muito a pena ver.



7. A different man, de Aaron Schimberg

Um trabalho inteligente, cheio de reviravoltas, sobre o ser, o parecer e a consciência de si próprio.

Sebastian Stan recebeu o Urso de Ouro para melhor actuação. Mas eu não conseguia tirar os olhos do Adam Pearson.









05 março 2024

Berlinale 2024 - dia 1


1. Yoake no subete - All the long nights, de Shô Miyake

Gostava muito de ter visto este filme, mas descobri demasiado tarde que há um raixparta de um túnel de S-Bahn que está em obras. Tive de mudar o percurso, perdi um tempo precioso, cheguei demasiado tarde. Aprendi para a vida - nunca mais perdi nenhum filme da Berlinale por causa desse maldito túnel em obras.


2. Săptămâna Mare - Holy Week, de Andrei Cohn

Roménia, finais do século XIX. Uma família judia vive à margem da aldeia, numa pequena propriedade onde tem um restaurante para quem passa. Às vezes, o marido conversa com a mulher sobre um rumor que ouviu, sobre a possibilidade de se mudarem para uma terra longínqua, nem se sabe bem onde, algures perto da Síria, onde poderiam viver em paz. Ela não acredita nisso. A partir do momento em que o pai da família começa a temer vir a ser vítima de um acto de grande violência, e a polícia da terra ignora os seus pedidos, desata a tomar decisões erradas.

Um filme escorreito, de ritmo um pouco lento, que não é necessariamente um daqueles filmes imperdíveis. Mas há algo importante que me ficou dele: lembrar (nunca esquecer!) a vulnerabilidade e a impotência perante uma hostilidade generalizada, que eram elementos determinantes na vida qutodiana dos judeus europeus. E perceber o poder apelativo do sonho de ir viver numa terra livres de humilhações e violências.


3. Small Things Like These, de Tim Mielants

Uma pequena cidade na Irlanda consegue assobiar pacatamente para o lado perante as atrocidades praticadas num lar de freiras que acolhe mulheres jovens "perdidas" - uma das "Magdalene Laundries" irlandesas onde tantas mulheres sofreram horrores. Todos, menos um pai de família, que vê e se debate com a decisão entre arriscar o futuro das suas próprias filhas e tomar uma posição de frontalidade e de respeito pela sua própria consciência.

Emily Watson extraordinária no papel de directora do lar. Cillian Murphy às vezes um bocado cansativo naquelas cenas de penumbra em contraluz onde o seu conflito interior se manifesta num perfil de boca entreaberta, a respirar com custo. Às escuras, até eu sou boa actriz...


04 março 2024

Berlinale 2024 - em defesa da liberdade de expressão


No post anterior falei sobre o aceso debate suscitado pelas críticas à guerra de Gaza que foram feitas na cerimónia de encerramento da Berlinale. Há políticos responsáveis na área da Cultura a anunciar o fim de apoios financeiros a "artistas anti-semitas", há instituições a anunciar que vão rever os apoios de financiamento à Berlinale. Neste contexto de "crime e castigo" (sendo que o crime é uma acusação de "anti-semitismo" segundo critérios que poucos entendem), esta declaração de Carlo Chatrian e Mark Peranson aparece como uma lufada de ar fresco:



March 1, 2024

We have a great deal of respect for the institution we are working for and for the country that has hosted us for the last five years. The way Germany has handled its past and overcome it, becoming a leading country in supporting human rights and welcoming people in distress has been admirable, and that is one of the reasons why we have been so proud to work for the Berlinale. Knowing that our backgrounds don’t allow us to fully comprehend the complexity of people’s feelings and beliefs, we have always aligned with the festival’s decisions even when these were not exactly ours and at times did not go in the direction of what an international film festival should stand for.

The last days have made us aware of the great danger that the Berlinale, like other institutions in Germany, is facing. That’s why we dare to raise our voices. We stand for cinema, which doesn’t belong to any political party- it is neither right wing nor left wing. We believe in the power of cinema to unite people. This year’s festival was a place for dialogue and exchange for ten days; yet once the films stopped rolling, another form of communication has been taken over by politicians and the media, one which weaponizes and instrumentalizes anti-Semitism for political means. No matter our individual political convictions or beliefs, we should all keep in mind that freedom of speech is an essential part of what defines a democracy. The award ceremony on Saturday, February 24 has been targeted in such a violent way that some people now see their lives threatened. This is unacceptable.

We stand in solidarity with all filmmakers, jury members, and other festival guests who have received direct or indirect threats, and do not back down from any programming choices made at this ear’s Berlinale. We also take this opportunity to state that we deeply feel for the hostages still being held by Hamas, including former Berlinale guest David Cunio, and we call for an immediate release of all other hostages. We also feel for the lives of millions of people in Gaza; their lives are in danger. To the ones who say that it is either or, we want to remind you that sorrow is universal. Mourning the loss of human beings on one side doesn’t mean that we don’t mourn others’ losses too. Stating the opposite is simply dishonest, and shameful and polarizing behavior.

As festivalgoers and programmers, we truly hope that the Berlinale will stay a “window of the free world”. A place where any film can be shown. A place where any international guest can come without having their political views scrutinized. As Meron Mendel, director of the Bildungsstätte Anne Frank said when asked for comments regarding the award ceremony, “It would be wrong to describe all those who criticize Israel one-sidedly and sometimes with radical positions as antisemites…

Whether we like it or not, we have to learn to endure such debates!

Carlo Chatrian, artistic director

Mark Peranson, head of programming

02 março 2024

Berlinale 2024 - entre a política e o cinema, com a guerra de Gaza no centro do palco



A Berlinale começou a 15 de Fevereiro, e acabou no domingo passado - depois de 90 km, 180 andares e três dúzias bem aviadas de filmes, no que me diz respeito. Desde que verifico no telemóvel os passos que dou e as escadas que subo, dou-me conta de que a Berlinale é meia preparação para uma maratona. 

Em 2024, o festival mostrou-se ainda mais político que o habitual. Na cerimónia de abertura começaram por aludir ao facto de terem desconvidado dois deputados da AfD, depois de se ter tornado pública a ligação deste partido a um movimento que pretende expulsar do país estrangeiros e até os seus filhos com nacionalidade alemã ("as tradições são importantes, mas às vezes é preciso serem revistas, e foi o que fizemos"). Condenaram a invasão da Ucrânia, o massacre do Hamas e o horror que neste momento se abate sobre a população civil de Gaza. No seu discurso, a ministra federal da Cultura referiu-se à guerra de Gaza num tom que já foi bem diferente do registo dos representantes políticos alemães em Outubro e Novembro. Por parte da Alemanha, o apoio a Israel mantém-se - mas não impede esta ministra do governo alemão de acusar a tragédia humanitária, e de afirmar que é imperativo caminhar urgentemente para uma solução de coexistência pacífica entre ambos os povos. 

Perante o ambiente muito tenso desta Alemanha polarizada entre o apoio incondicional a Israel e as duras críticas à catástrofe humanitária em Gaza, os directores da Berlinale falaram do festival como um espaço de diálogo, de troca de ideias e de escuta do outro, e apresentaram o projecto "tiny house", que é sobretudo simbólico: um pequeno pavilhão na Potsdamer Platz onde, no início do festival, durante três dias um judeu e um palestiniano se ofereciam como interlocutores para quem quisesse trocar ideias e verbalizar angústias.

O festival de cinema correu bem, como é habitual. Nota-se nos detalhes que já não tem os patrocinadores poderosos de outros tempos, mas os bilhetes para a maioria dos filmes continuaram a esgotar poucos minutos depois da abertura das bilheteiras online, e muitas praças de Berlim encheram-se com o bulício típico da Berlinale.

Na cerimónia de encerramento é que tudo se complicou: os prémios principais foram atribuídos segundo critérios mais políticos que artísticos - urso de ouro para um documentário sobre a restituição de peças de património cultural ao Benim, prémio do melhor documentário para "No Other Land", sobre a ocupação violenta de aldeias palestinianas e o roubo de terras na Cisjordânia. Os discursos foram - segundo as críticas que logo agitaram a sociedade - demasiado unilaterais. Falou-se em genocídio e apartheid, exigiu-se um cessar-fogo imediato, mas a ninguém ocorreu lembrar o massacre do Hamas, e o que revelou ao mundo inteiro sobre a insegurança de quem vive em Israel. Mais significativo ainda: quando duas pessoas da assistência se ergueram e gritaram "Paz para Israel e os palestinianos!", foram vaiadas. E os políticos presentes na sala - entre outros, o presidente de Berlim e a ministra federal da Cultura - não tiveram a presença de espírito de reagir de forma adequada. Como também não houve reacção por parte dos moderadores no palco, nem dos directores da Berlinale.

No noticiário do primeiro canal de televisão, o responsável pelo pelouro da cultura do Estado de Berlim acusou o anti-semitismo que grassa nesta sociedade e em particular no mundo da cultura, e que tem de ser encarado de frente, nomeadamente recusando financiar com fundos públicos projectos artísticos de pessoas que são anti-semitas ou têm um comportamento discriminatório. Como é, infelizmente, habitual nestes casos, o seu discurso não foi claro na distinção entre anti-semitismo e crítica aos actos cometidos pelo Estado de Israel.

A comentadora Monika Wagner foi mais clara e pedagógica: "O que aconteceu na Berlinale provocou um escândalo que não foi útil para ninguém e prejudicou muitos, desde logo os artistas que querem que o seu trabalho seja levado a sério. Sim, pode-se exigir um cessar-fogo, sim, pode-se criticar a política de colonatos de Israel, sim, com certeza que se pode criticar o modo como Israel aceita que em Gaza sejam mortas pessoas inocentes em massa. A nada disto se pode chamar "discurso anti-semita". O que levanta questões é o modo como alguns criticaram as operações militares de Israel em Gaza sem mencionarem o sofrimento das pessoas no dia 7 de Outubro. Porque estamos a falar de pessoas que foram torturadas e mortas com toda a bestialidade, pessoas que foram desumanizadas. Falamos de uma organização terrorista que quer implantar um Estado islâmico, quer varrer Israel do mapa e tem ainda em seu poder muitos reféns inocentes. Nos seus discursos, os artistas premiados não disseram uma única palavra sobre isto. Não será possível pôr fim a este conflito assustador se não se encarar e nomear o sofrimento de ambos os lados. Só uma verdadeira compaixão em relação a todas as vítimas pode ajudar a resolver este conflito e a restaurar a humanidade. O que não ajuda nada são afirmações unilaterais cheias de veemência. Pode-se ou deve-se proibir manifestações deste género no futuro? Como é óbvio: não. Deviam os moderadores ou a direcção do festival ter reagido de outra forma? Isso teria, ao menos, reduzido a dimensão dos danos. Porque os danos são imensos no caso de um festival internacional como este. A polarização unilateral raramente ajudou a resolver um conflito; na maior parte dos casos, tornaram-no ainda mais grave e mais duradouro."  

Perante a catástrofe de Gaza, o mundo dá consigo cada vez mais entrincheirado em retóricas de abominação do outro. Se queremos o fim deste conflito de tantas décadas, temos de saber pôr fim à espiral do ódio. Antes de mais, temos de ser capazes de transformar o nosso discurso num húmus para a paz: a matéria orgânica que transforma a podridão e o horror da morte em promessa de vida. Queremos que Israel e os grupos jihadistas parem de atacar as populações civis de um lado e do outro do muro, queremos a libertação imediata tanto dos reféns do Hamas como dos palestinianos que estão em prisões israelitas sem julgamento. E queremos que os governos dos nossos países se unam a uma comunidade internacional cada vez mais coesa, e muito determinada em estabelecer uma ordem nova que garanta para todos - judeus e árabes - a coexistência pacífica e uma vida com dignidade naquela terra.

 

29 fevereiro 2024

padaria

Fui à padaria à hora a que estava para fechar, e já não havia quase nada. A senhora à minha frente fez o pedido, e logo a seguir voltou-se para mim e perguntou "não queria isto, pois não?". Eu disse que não, e quando chegou a minha vez pedi tudo o que queria, mas antes perguntava sempre à pessoa atrás de mim se estava interessada. E até rimos um bocado, porque ela queria o outro pão parecido com o meu, mas com passas, e temia que eu o comprasse.

E de repente, ali pelas 17:50 da tarde, uma padaria berlinense tornou-se um local cheio de seres humanos, e foi bonito.

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Há 20 anos vi um filme onde se informava que o pão que se deitava fora todos os dias em Viena era suficiente para alimentar toda a cidade de Linz. Consequência dos hábitos dos consumidores que vão comprar 5 minutos antes do fecho da loja, e ainda querem ter todas as variedades de pão e de produtos frescos ao seu dispor.

Esta mentalidade está a mudar - e parece-me excelente.

26 fevereiro 2024

já Helena não sou

Durante a Berlinale, fiz gazeta à Enciclopédia Ilustrada. Nem podia ser de outra maneira: à hora a que devia publicar a palavra para os posts desse dia, já estava a ver o primeiro filme da minha lista.

Mas hoje voltei. Primeiro avisei que ia passear o cão, e talvez me atrasasse, algo a que os amigos daquele grupo já estão mais do que habituados.

Aliás: consta que gostam que me atrase, só por causa das desculpas que arranjo para explicar o atraso. Mas hoje - milgare? - não me atrasei. Pelo que tive de publicar  uma espécie de desculpas por ter fugido ao habitual:

Amigos, isto agora é oficial:
Pois já Helena não sou.
O Fox - será da idade? -
Nem fugiu, nem me atrasou.
Dei meia volta à cidade
Pus a roupa no varal
E nem assim, meus amigos,
Consegui um atrasinho
Nem sequer o mais banal.
Será este o bom caminho?
Será este o meu final?

14 fevereiro 2024

a propósito de dilemas


Há dias falei do dilema sobre escolher entre salvar um cão e salvar o Hitler, se só se pudesse salvar um deles de uma casa em chamas. Pessoalmente, resolvia este problema de princípios civilizacionais de forma simplória: salvava o que pesasse menos, porque as minhas forças são limitadas...

Dilema puxa dilema, parei num outro, esse realmente difícil: se uma tragédia mortal estivesse prestes a acontecer, digamos, dois carros avançam para um precipício, num vão oito pessoas e no outro vai um filho meu; tenho forma de evitar que um dos carros caia - que carro escolho? [ Que carro escolhiam vocês, se fosse um filho vosso? ]

Se fosse eu quem ia no carro, não teria a menor hesitação: salvem os outros. Porque não sei como conseguiria viver a minha vida, se soubesse que alguém tinha escolhido deixar morrer oito seres humanos para me salvar a mim.

Parece fácil, mas logo tropeço nas dificuldades da vida real: os dois reféns do Hamas que o exército israelita libertou em Gaza. O noticiário alemão (aqui, a partir de 14:09) mostrou imagens do resultado da "manobra de diversão" (terrível nome!): "Mas a felicidade de uns é a violência e a morte de outros", disseram. "Para desviar a atenção da manobra de libertação, o exército atacou outros alvos em Rafah, há inúmeros mortos e feridos". Entrevistam uma menina de nove anos, Mai al-Najjar, que tem o corpo cheio de feridas. O pai foi morto. "Estava numa tenda com a minha família quando começaram a atacar-nos. O meu pai foi lá fora, para ver o que se estava a passar. Disse que havia explosões, e ainda estava a falar quando ouvimos mais uma. Fugimos todos a correr." Os reféns libertados: como será viver o resto da vida sabendo que, para me salvar a mim, mesmo sendo eu vítima de uma injustiça tremenda, assassinaram dezenas de pessoas igualmente inocentes e igualmente vítimas de tremendas injustiças? As famílias dos restantes reféns do Hamas: como exigir "bring them back" ao seu governo, sabendo que o preço dos resgates é a vida de muitos inocentes? E será que exigir a Netanyahu que negoceie a libertação imediata em vez de operações como esta é uma hipótese plausível? A pessoa que informou o exército israelita sobre a localização dos reféns: como vai conseguir dormir, de hoje em diante? E Netanyahu: a sua popularidade está em alta porque conseguiu salvar dois reféns. Este massacre de civis não passou de uma operação de propaganda. Apesar dos ataques de uma violência para lá de obscena contra civis, e apesar de terem morrido nesta operação dois soldados israelitas, a popularidade de Netanyahu está em alta. Grande parte da população israelita: adere a este desvario, completamente alienada pelo trauma da orgia de violência do 7 de Outubro, pela tragédia dos reféns e pelo ambiente irracional de um país em guerra.

E o Hamas: a operação de resgate - com todo o horror que se viu - não teria acontecido se já tivessem libertado todos os reféns. Ou se já estivessem a negociar com seriedade a troca de cada um destes reféns pelos palestinianos indefinidamente retidos sem julgamento em prisões israelitas. Ou se já se tivessem rendido. O Hamas: que atirou os palestinianos para este vórtice de violência sem lhes perguntar se estavam disponíveis para morrer numa mais que previsível "guerra total". Que continua teimosamente a oferecer resistência a um inimigo muito mais forte, absolutamente impiedoso e que tem mostrado que não recua perante nada. Há meses que penso na história bíblica das duas mães que deram à luz na mesma altura. Durante a noite, o filho de uma delas morreu, e ela trocou os bebés. De manhã, a mãe da criança roubada deu pela troca. O caso acabou por ir ao rei Salomão, que decidiu partir a criança viva em duas, para dar meio filho a cada mãe. A mentirosa disse "pois então que seja", e a mãe verdadeira implorou que entregassem a criança inteira à outra mulher. Pôs a defesa da vida do filho que amava acima das suas razões e da sua sede de justiça. Penso nesta história especialmente desde o dia em que vi um cartoon da campanha "e tu? também condenas o Hamas?", um meme ardiloso que servia para ridicularizar quem acusava o Hamas. Naquele cartoon, mostrava-se um soldado israelita a fazer essa pergunta a um prematuro num hospital de Gaza. Que não haja dúvidas: não há desculpas nem perdão para quem corta os fornecimentos de água e electricidade a uma população encerrada dentro de muros. Sim, todos ficámos horrorizados perante as imagens da sala de bebés prematuros, onde as máquinas estavam prestes a deixar de funcionar porque não havia combustível para os geradores. Provavelmente todos sentimos a mesma impotência e uma enorme repulsa pelo governo de Netanyahu, o responsável por esta situação. Mas aquela pergunta feita a um bebé que está em risco de morrer num braço de força ignóbil - "e tu? condenas o Hamas?" - levanta uma questão pertinente: "e tu, Hamas? que fazes para salvar este bebé?" Israel cortou o fornecimento de energia, mas nos depósitos do Hamas havia reservas de combustível suficientes para alimentar o gerador que podia salvar aqueles prematuros. Diga alguém, se o souber: o Hamas disponibilizou algum do seu combustível para permitir que os hospitais continuassem a funcionar? Ou preferiu guardá-lo para continuar a lançar rockets simbólicos contra o iron dome de Israel? Este bebé prematuro desenhado no cartoon, tal como o bebé disputado no tribunal de Salomão, corria risco de vida. De um lado, tem um soldado do exército de Israel. Mas do outro lado não tem um Hamas no papel da mãe que ama o seu filho acima de tudo. O Hamas deseja a todo o custo ganhar a disputa, mas não tem amor à criança. "Vai morrer? Pois então que seja", diz o Hamas. "Até dá jeito, para a propaganda. Dá sempre imagens impecáveis para o tiktok."


a origem do apocalipse

 

"Será que o Wladimir Kaminer está a escrever sobre a guerra da Ucrânia?", perguntou-me o Carlos Vaz Marques em Março de 2022, se não me engano. "Quem me dera publicar um livro dele sobre esse tema!" "Sabes aquele português que publicou o Viagem a Tralalá?", perguntei eu umas semanas mais tarde ao Kaminer. "Disse que faz questão de publicar um livro teu sobre a guerra da Ucrânia." O Wladimir Kaminer limitou-se a fazer aquele seu sorriso de quem sabe muito mais do que revela. Passados uns meses: "Podes dizer ao teu amigo português que o livro dele está pronto." E foi assim que eu comecei a traduzir um livro meses antes de ele ser posto à venda na Alemanha (o que foi uma chatice, porque o ficheiro pdf era tão secreto tão secreto tão secreto que nem o consegui converter para word, que é como gosto de trabalhar). É esta a minha história sobre a origem deste livro. Provavelmente não é a história tooooda, mas - deslarguem-me! - quem a conta sou eu, conto-a como muito bem me apetece.
😉
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"Pequeno-almoço à beira do apocalipse" não é só sobre a guerra da Ucrânia (e os ucranianos que vieram parar a Berlim e a Brandenburgo, e a repentina urgência dos homens nos confins da Rússia de ir apanhar amoras nas montanhas, e ficarem por lá, etc.). É - como todos os livros do Kaminer - um conjunto de crónicas sobre o que acontece. Neste caso: escreve sobre o nosso tempo, cheio de espadas de Dâmocles, num registo que consegue ser (quase sempre) divertido, apesar da seriedade dos temas. Porque, como dizia ele há muitos anos, numa entrevista: " A nossa vida é uma tragédia, estamos permanentemente a ser confrontados com desafios maiores que nós. Mas só conseguimos avançar se identificarmos o lado divertido desta tragédia." Se quiserem ler o livro antes de chegar às livrarias, é aqui: www.zigurate.pt/apocalipse
E se são daquelas pessoas que gostam de ler as primeiras frases do livro antes de o comprar ("felizes os que acreditam sem ler"... ), pronto, lá terá de ser...